segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

A TRADIÇÃO ORAL E A LITERATURA DESCOLONIZADORA EM JOÃO GUIMARÃES ROSA E MIA COUTO

Miguel Nenevé 1
Rose Siepamann 2

Resumo: Neste trabalho exploramos a tradição oral, a linguagem brincalhona, revolucionária e descolonizadora em dois textos em  língua portuguesa: “A terceira margem do rio”, do brasileiro João Guimaraes Rosa e “Nas águas do tempo”, do moçambicano Mia Couto. Nos dois contos as personagens se misturam e se diluem com a imagem do rio, uma vez que elas buscam, pelo rio, fazer seus deslocamentos para um mundo mais interior, mais íntimo mais isolado. Tanto em Guimarães como em Couto, pode-se perceber que a linguagem como instrumento de revolução e descolonização uma vez que revisitam culturas e vozes “condenadas”, recriando, revalorizando e revigorando uma linguagem esquecida pelos “homens cultos.” A linguagem “impura”, o linguajar do povo, o brincar com a linguagem, o inventar e desinventar enchem os dois textos de graça e sugerem reflexão sobre um mundo de pessoas simples, apegadas à terra.
Palavras-Chave: Criação, Linguagem, Inventação, Descolonizaçao.

Abstract: In this study we explore the oral as well as the creation and recreation of Portuguese language in the works of a Brazilian and a Mozambican writer. We focus our attention  on their use of a creative, “impure” and revolutionary language. Joao Guimaraes Rosa in “The Third Bank of the River” and Mia Couto in “The Waters of Time” reveal very good skills in re-inventing and recreating the Portuguese language in a way that makes the text very light and funny. In both stories, simple people from the interior get mixed with the river that flows along their lives. At the end, river and man seem to be the same. The simple “impure” and unsophisticated language reveals the close connection between man and nature at the same time that promotes a recovery of the forgotten culture of the people. In this way, one can state that the revolutionary language is a way of valorizing people´s simple life and in this way a decolonizing a particular world.
KeyWords: Creation, Language, Invention, Decolonization.

A propósito da língua, sabe uma coisa, Doutor Sidonho? Eu já estou a desmulatar.
E exibe a língua, olhos cerrados, boca escancarada. […] a mucosa está coberta de fungos, formando uma placa esbranquiçada.
Quais fungos? – reage Bartolomeu. Eu estou é a ficar branco de língua, deve ser 
porque só falo português (Mia Couto, Venenos de Deus, p. 110-111).
                                                            
Em uma palestra proferida na UFMG em Belo Horizonte, em julho de 2007, Mia Couto afirma que “Brasil e Moçambique não apenas falam a mesma língua, mas sentem de forma semelhante o que não pode ser dito em nenhum idioma”3. O autor acredita que há muita cosia em comum entre os dois países como uma espécie de saudade do que aconteceu, ou lamentação do que poderia ter acontecido, são sentimentos comuns a países de língua portuguesa. Por inúmeras vezes o autor tem confessado a importância da literatura brasileira para a sua literatura, o seu jeito irreverente de escrever. Entre os escritores brasileiros que deixaram influência em sua alma e em seu jeito de escrever, está o mineiro João Guimarães Rosa. Neste trabalho gostaríamos de explorar a tradição oral e a importância dela tanto para o brasileiro Guimarães Rosa como para o moçambicano Mia Couto. Argumentamos que tanto o brasileiro como o moçambicano de certa forma escrevem uma literatura descolonizadora ao voltar para o seu passado, ao resgatar ditos populares, provérbios do povo da terra, mitos escondidos nos distantes confins. Exploramos também a diferença entre os dois escritores. Enquanto que em Guimarães a narrativa vai se tornando densa, em Mia Couto, parece haver mais uma preocupação com o processo da criação ou melhor recriação da linguagem do que com questões psicológicas. “Escolhemos os contos, “A Terceira Margem do Rio” de Guimarães Rosa e “Nas Águas do Tempo” de Mia Couto uma vez que em ambos os textos a paisagem humana e as vozes diversas não ouvidas anteriormente são valorizadas pelos autores. Nos dois contos estas vozes se misturam e se diluem com a imagem do rio, uma vez que as personagens buscam, pelo rio, fazer seus deslocamentos para um mundo mais interior, mais íntimo mais isolado. Ademais, nas duas obras pode-se perceber que os autores usam a linguagem como forma de descolonização uma vez que revisitam culturas e vozes recriando e revalorizando e revigorando uma linguagem esquecida. Antes de apresentarmos os textos, gostaríamos de discutir brevemente o conceito de descolonização por meio da linguagem proposto por alguns teóricos do pós-colonialismo.
A Linguagem é fundamental para a discussão sobre descolonização porque a colonização começa com a linguagem. “O controle do ‘centro’ (que se instala como padrão) sobre a língua do outro, isto é sobre outras variantes ‘impuras’, permanece como um dos mais fortes instrumentos de controle. Por exemplo, a força da linguagem pode ser demonstrada pelo poder de nomear, a função dos nomes que se dá aos locais ou às pessoas. Nomeá-lo é entender.Portanto, renomear, recriar a linguagem é uma forma de dizer que não se aceita a imposição ou a colonização. Referindo-se à linguagem e colonização, o queniano Ngugi Wa Thiong´o (1986) afirma que a cegueira (ou surdez) que muitas vezes a mente colonial tem em relação à voz, à realidade e à cultura de povos humildes, colonizados explica um pouco da história de desconsideração para o povo do interior, para o colonizado. A tradição e cultura oral, as histórias foam desconsideradas “por não fazerem parte do mundo “ civilizado” do mundo do colonizador. Em sua obra Decolonizing the Mind (1986) Ngugi, lembrando Frantz Fanon, argumenta que a lingaugem é usada para colonizar, para afastar o povo colonizado do colonizador, do centro onde se tomam as decisões. Portanto a linguagem funciona como um mecanismo que separa os “ que sabem” e os que não sabem. Assim aprender a lingua culta, no caso de Ngugi,a língua inglesa, significa esquecer o passado, a história, as crenças enfim a herança cultural.
A linguagem culta, logicamente, vai refletir somente a história e a cultura dos privilegiados. Neste aspecto, a colonização não é uma questão de força física, mas de uma subjugação psicológica ou subjugação espiritual. Quando se propaga que a cultura verdadeira é a do colonizador, que usa a norma culta, quando se despreza a tradição oral ou a oratura, devasta-se a cultura do povo humilde, sem educação e sem acesso ao poder. Como diz o autor queniano, “a lingua carrega cultura e cultura carrega (principalmente por meio da oratura e literatura), o corpo completo de valores pelo quais nós percebemos a nós e nosso lugar no mundo.” Portanto, é a linguagem que vai ajudar a descolonizar, a recuperar e a repensar valores e crenças até então negligenciados.
No capítulo “The Language of African Literature”, da obra Decolonizing the Mind, Ngugi volta a argumentar que ele, com seu povo, aprendeu o valor das palavras pelo seu significado e suas nuances : “Language was not a mere string of words. It had a suggestive power well beyond the immediate and lexical meaning”. Ou seja, a língua não era apenas uma série de palavras, mas tinha um poder sugestivo muito além do significado lexical imediato” (p. 11). O autor confirma que a apreciação da força sugestiva da língua era reforçada por jogos de palavras, provérbios, transposição de sílabas de música da sua cultura. A alienação colonial acontece quando a pessoa se distancia do seu mundo, da realidade ao redor, começa com uma dissociação,com uma afastamento deliberado de sua língua, de seus conceitos, de seu pensar, de sua educação enfim, da linguagem do dia a dia (p. 28).
Em sua obra The Wretched of the Earth, Frantz Fanon argumenta que a descolonização tem que acontecer em cada nível, para que aconteça a criação “de um novo homem” (p. 36) uma vez que o colonizador conquista privilégios à custa do prejuízo do colonizado, ele sente necessidade de justificar o privilégio ao criar o mito de si mesmo e o mito do colonizado. O colonizador é o virtuoso, o civilizado, aquele que tem a linguagem e comportamento corretos e por isso conquista a mais alta posição. Por meio da linguagem pode-se também reverter esta visão ao resgatar a cultura e a história do povo oprimido. Fanon enfatiza que o intelectual que escreve para o sua nação, deve escrever para compor a sentença que expressa o coração do povo e para tornar-se uma peça importante para uma nova realidade em ação (p. 179). Por fim, o intelectual nativo deve usar o passado com a intenção de abrir o futuro, como um convite e uma base para a esperança (p. 187).
Bill Ashcroft (1995, p. 300) sustenta que a linguagem é o primeiro defensor da “propriedade”, comumente mantida para incorporar ou conter o significado por uma representação direta ou de um jeito mais sutil ao determinar a percepção do mundo. “A linguagem num mundo pós-colonial, caracterizada como é pela complexidade, hibridização e mudança constante, inevitavelmente rejeita a crença numa estrutura ou num código lingüístico que pode ser descrito pelo colonizador como” “padrão.” Este rejeitar da linguagem padrão está bem visível nos textos que nos propomos analisar. Neste caso que o linguajar do povo ou até mesmo o dialeto vem como forma de descolonização. Edward Kamu Brathwaite (1995, p. 311), por exemplo, falando sobre a língua do Caribe, o inglês caribenho diz que o dialeto foi considerado um erro, um inglês ruim, uma linguagem inferior. Por outro lado, ele afirma que o dialeto ou a linguagem impura é a língua que se usa quando se quer fazer graça de alguém. “Caricatura fala em dialeto” (p. 311). A linguagem impura como o dialeto tem uma longa história de colonização de sofrimento, de distância do centro vêm do interior onde as pessoas trabalhando na roça tem sua dignidade distorcida por meio da linguagem. É neste aspecto que ambos os escritores, o brasileiro João Guimarães Rosa e o moçambicano Mia Couto podem ser considerados autores de textos descolonizadores. Os seus textos são visivelmente uma resposta a uma dominação cultural ou lingüística. Eles tecem suas histórias que são as histórias do seu povo demonstrando uma recusa em usar a língua padrão e a cultura padronizada do colonizador. Eles nomeiam a sua realidade, o seu povo e o seu ambiente, visivelmente extraindo daí uma força textual que forma harmonia com a complexa identidade cultural do povo menos privilegiado que aparecem em seus textos.
É esta linguagem do povo sofrido, esta linguagem de deboche de divertimento, esta linguagem fora do padrão, esta linguagem reinventada, “brincriada” que veremos tanto em histórias de João Guimarães Rosa e de Mia Couto. Neste trabalho exploraremos os universos rosiano e coutiano mostrando como a há identificação pelo uso da linguagem como descolonização, pois ambos se aproximam pela herança colonial, fatores de subdesenvolvimento, às trocas culturais, e à língua. Mas o que mais os entrelaça é o gesto e o gosto do com suas obras nos dão a certeza de que a literatura atravessa os tempos, as fronteiras e mergulha nas ondulações da história, para recriá-las de uma certa forma rejeitando o padrão, o oficial. Neste aspecto que há uma descolonização uma volta à língua portuguesa uma briancriacão e uma re-criação. Há também descolonização pelo fato de podermos ouvir aquelas vozes muitas vezes negligenciadas em outras vozes pela história oficial. Ambos se aproveitam da possibilidade da oratura ou da literatura oral para desestabilizar as verdades, as certezas e as identidades imutáveis.
João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo. Minas Gerais, em 1908. Foi médico, atuou como diplomata, atividades que ajudaram nos caminhos para um escritor que construiria uma obra carregada de experiências humanas pungentes, aflitivas, dolorosas, com muitos mistérios. Seus textos nunca cessarão de gerar discussões, sob várias abordagens. Suas obras entre as quais Grande Sertão Veredas, Sagarana, Primeiras Estórias são conhecidas no Brasil e no exterior e no ano de sua morte, 1967 ele seria indicado para o Prêmio Nobel de literatura.
“A Terceira Margem do Rio” é um conto que faz parte do livro “Primeiras Estórias” publicado em 1962. Neste texto não é difícil perceber que o autor transpõe barreiras lingüísticas para favorecer a rebeldia no uso da língua portuguesa. A recriação,a recuperação de provérbios e dizeres revelam a busca de um mundo esquecido, mais profundo, mais primitivo. O leitor sente logo a marca da solidão, de uma viagem feita a sós, à busca das origens,ou busca a um mundo desconhecido, a algo nunca antes esclarecido. O pai que “era sério, cumpridor, ordeiro, positivo” (ROSA, 2005, p. 77) um dia decidiu fazer uma canoa pequena para ele deslizar pelo rio. Para explicar a decisão da partida do pai é que são ouvidas muitas vozes que revelam a visão de um povo humilde do interior de Minas. Mostrando convivência com o povo deste interior, o autor vai colocando a contribuição popular em seu texto. Já no início, por exemplo, se percebe a oralidade, aquilo que se ouve na boca das pessoas, como por exemplo: “do que eu mesmo me alembro (ROSA, 2005, p. 77). “Nosso pai nada não dizia” “nossa mãe era que regia e que ralhava no diário” (p. 77). A oralidade revela também intimidade, apego ao chão, à terra e à natureza. É interessante observar que na expressão da mãe, a mulher,” Cê vai, ocê fique, você nunca volte!” (p. 77), há uma gradação de uma linguagem oral para uma linguagem mais culta. Poderíamos dizer que a norma culta significa o distanciamento, a ruptura com aquela vida. Ao se afastar, ao ir embora, o homem se afasta da vida coloquial, cotidiana, íntima com a mulher, deixando de ser próximo para ser distante. A oralidade, portanto, pode ser a força da vida deste povo, a valorização do não ouvido pelo centro, do esquecido pelas autoridades, do negligenciado pelos homens “ cultos” que vivem distantes dali.Quando a mulher opta pela linguagem culta é como se estivesse assumindo outra identidade, ou assumindo a perda do seu mundo, do seu jeito de ser, como se estivesse aceitando a colonização.
Portanto, como vimos argumentando a oralidade dá força à linguagem como um meio de descolonização uma vez que convida o leitor a repensar a realidade de uma região muitas vezes negligenciada e esquecida. . A oralidade é reproduzida na fala do narrador: “o rio por aí se estendia grande, fundo, calado que sempre” (p. 77). As frases curtas também lembram ao leitor a realidade de poucas palavras de um mundo distante da cidade: Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá concordando (p. 78). A recriação ou o distanciamento da linguagem padrão, podemos dizer a rebeldia no uso da língua também é revelada pela sintaxe: “não fez a alguma recomendação”, “nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele”. Quando o autor usa expressão como “o rio-rio-rio,o rio sempre fazendo perpétuo” parece refletir o linguajar do povo do sertão do pouco vocabulário e da necessidade de enfatizar o contínuo fluxo do rio, o não parar, o continuar a existir. Podemos dizer que o constante uso de neologismos serve para mostrar a herança cultural e lingüística, para revelar conceitos que podem contribuir para o entendimento deste mundo íntimo. Vemos em “A Terceira Margem”, por exemplo, neologismos como “diluso” (p. 79) que pode ser, talvez, uma variante de diluto, diluído; “bastável” (p. 79) adaptação do verbo bastar com o sufixo “avel”, significando que pode bastar; “entrelembro” (p. 81), lembrar entre um e outro pensamento. Assim em sintonia com o contexto vão aparecendo muitos outros neologismos: “malsinar”, “demoramento”, “bubuiasse” (p. 81). Esta linguagem sugere que os mistérios da alma, mesmo das pessoas simples é de difícil acesso, de difícil compreensão. A loucura de um pai no sertão pode remexer lembranças, visitar uma consciência distante ou talvez expressar a necessidade da fuga de um mundo que não podia ser seu. Pelo rio, o pai pode estar buscando a si mesmo, buscando mistérios que ainda não pode compreender em si mesmo. Esta mesma busca, de um modo mais sobrenatural, acontece no conto “Nas Àguas do Tempo “de do moçambicano Mia Couto.
Mia Couto nasceu na Beira, Moçambique, em 1955. Atuou como jornalista, biólogo e, como escritor, tem construído uma vasta obra que mostra a realidade de um país repleto de vozes singulares, apresentadas ao leitor pelo forte imaginário do autor que se dilui ao imaginário do povo moçambicano. Segundo o próprio autor a utilização deste apelido tem a ver com sua paixão pelos gatos e desde pequeno dizia a sua família que queria ser um deles. Ele disse uma vez que não tinha uma “terra-mãe” — tinha uma “água-mãe”, referindo-se à tendência daquela cidade baixa e localizada à beira do Oceano Índico para ficar inundada. Entre os romances se destacam Terra Sonâmbula, O último Vôo do Flamingo e o Outro Pé da Sereia.
Por diversas vezes em várias entrevistas Mia Couto tem confessado que obra de Guimarães Rosa influenciou seus escritos. Foi por meio do angolano Luandino Vieira. que ele chegou a Guimarães, como confirma o autor em entrevista em 13 e janeiro de 2009:

O Guimarães foi uma iluminação para mim, uma descoberta importantíssima. Eu tinha feito já um livro, Vozes anoitecidas, em que eu me deparava com essa coisa do como é que eu vou escrever usando esta língua portuguesa herdada dos portugueses com uma estrutura, uma lógica, uma racionalidade e como esta língua pode contar as histórias que eu quero, como pode dar luz a esses personagens que vivem numa outra cultura4.

Parece que podemos afirmar Guimarães por meio do Angolano Luandino Vieira ajudou Couto a refletir, repensar e revisar questões de herança lingüística, questões de fronteira entre a escrita e a oralidade, questões que refletem a descolonização pela linguagem:

Luandino [Vieira] foi a primeira influência grande. Ele faz isso com o linguajar de Angola, particularmente dos subúrbios de Luanda. Depois, numa entrevista que Luandino deu, eu tomei conta de que existia um tal João Guimarães Rosa deste lado. Mas não tinha nenhuma maneira de chegar até ele, porque nós tínhamos a guerra e não havia coisas do Brasil circulando. Pedi a um amigo que me trouxesse um livro, trouxe Primeira Histórias. De facto, foi um momento mágico. A escrita do Guimarães Rosa está cheia não só desse trabalho de reconstrução de uma língua mais plástica, mas também há ali um convite para que a oralidade invada a escrita, numa espécie de transbordarão daquilo que é a lógica da escrita, que se deixa ir por outra lógica. Acho que é mais do que um trabalho lingüísticopoético. É uma coisa que tem a ver com a fronteira entre a oralidade e a escrita, isso é que foi importante para mim (COUTO, 2009 – entrevista).

No conto “Nas Águas do Tempo” que faz parte da coleção Histórias Abensonhadas, Mia Couto, como no conto de Guimarães Rosa, apresenta vozesque se diluem com o correr do rio. A oralidade e a recriação são as marcas das falas das pessoas. Neste conto o narrador não é o filho, como em Guimarães Rosa, mas é o neto: “Meu avô nestes dias me levava rio abaixo” (p. 13). Nas duas estórias a mulher fica na terra e os homens buscam o rio como se à procura de um mistério. Parece que a mulher, como aparece em outras estórias dos dois autores deve se apegar mais à casa, ao chão, enquanto que o homem pode seguir o fluxo da vida, ou o fluxo do rio, sempre revalorizando as vozes antigas, a voz interior, os ancestrais, o quase esquecido:

Enquanto remava um demorado regresso, me vinham à lembrança as velhas palavras de meu velho avô: a água e o tempo são irmãos gêmeos, nascidos do mesmo ventre. E eu acabava de descobrir em mim um rio que não haveria nunca de morrer. A esse rio volto a gora a conduzir meu filho, lhe ensinando a vislumbrar os brancos panos de outra margem (COUTO, 2003, p. 17).

Como Guimarães Rosa, Mia Couto, recria, dentro da língua portuguesa, uma outra língua culturalmente remodelada, baseada na oralidade, nos costumes e na sabedoria do povo. Por exemplo: “[...] Ele remava, devagaroso, somente raspando o remo na correnteza.O barquito cabecinhava, onda cá, onda lá, parecendo ir mais sozinho quer um tronco desabandonado” (COUTO,2003, p. 14): Como em Guimarães, os verbos são criados a partir de nomes, prefixos são utilizados para recriar e reinventar palavras com significado específico para o momento. É bom lembrar que não se pode dizer simplesmente que o autor moçambicano recria a linguagem passando da tradição para o texto. Segundo estudiosos, como Iolanda Cristina (2003) e Maria do Carmo Lanna Figueiredo (2003), Mia Couto não faz uma simples recriação dos elementos da tradição para o texto, porque ela ainda é vivida pelo seu povo, especialmente no que diz respeito à população que vive no meio rural, ainda sem acesso à alfabetização, tendo como forma potente de comunicação a oralidade. É esta oralidade viva e pertinaz que fica visível por exemplo no deslocamento da ordem sintática, semântica e lexical, como na prefixação, sufixação etc. Argumentamos que ela serve para dar força de expressão a vozes amortecidas num país pobre e colonizado.
Os neologismos em Mia Couto, como em Guimarães, servem também para mostrar a herança cultural e lingüística, de um povo que fica longe dos centros de poder. Expressões como “devagarosos” “ agorinha”, desbengalado”“ solavanqueava”, “ensonada”, “ sonecando”, “espantável”, “desequilibrismo”“ alonjar-se” “ arrepioso”, “barafundido” “neblinaram”, entre muitas outras”,são marcas de Mia Couto em suas estórias e revelam a importância que se dá às populações esquecidas, semi ou completamente analfabetas, que se expressam pela palavra dita e não escrita. Os recursos do autor moçambicano, como do autor brasileiro, não somente dão graça ao texto, mas também chamam atenção do leitor para um mundo diferente, um mundo esquecido, negligenciado que precisa ser ouvido e que contém uma riqueza cultural inestimável.
Assim a narração, a memória e a História se entrecruzam de tal maneira, que o leitor percebe que a ficção agradável de se ler não fica muito distante da realidade social. Neste caso, a postura dos autores não é apenas uma questão de estética, mas também ideológica. Neste aspecto o texto descoloniza o antigo, o tradicional, o oral o português dos cantos mais pobres. A tradição em Couto como em Guimarães não é algo para ser evocado ou apenas lembrado, mas, da mesma forma como permanece viva em seu país, traduz-se no texto. Ao lermos, ouvimos, um “falar”; de vozes que privilegiam a oralidade, as raízes, as origens, as lembranças velhas, o quase esquecido. Como diz Iolanda Cristina Santos no artigo “Brasil e Moçambique: Estórias
que se contam”.

Uma das marcas desta linguagem é a oralidade, responsável por dar vigor ao texto e traduzir a vida, as vivências, costumes e comportamentos das diversas comunidades culturais de Brasil e Moçambique. Nesse sentido é importante ressaltar que Moçambique, sendo um país cuja cultura é predominantemente ágrafa, não somente a literatura, bem como a história recorre, quando necessário, à tradição oral, utilizando-a como fonte (ver http://www.segundocoloquioafricano.ufjf.br/iolanda.pdf).

Como temos demonstrado, além das características da tradição oral, a criação do autor também acolhe vários neologismos também na forma textual como semântica. Isto, não é somente uma postura estética ou lingüística, mas postura descolonizadora que pretende dar força às diferenças, às vozes negliciadas ou esquecidas. A ligação com o mundo antigo, entre sonho e realidade proporciona nova visão:

Presenciei o velho a alonjar-se com a discrição de uma nuvem. Até que, entre a neblina, ele se declinou em sonho, na margem da miragem. Fiquei ali, com muitoespanto, tremendo de um frio arrepioso.... Enquanto ainda me duvidava foi surgindo, mesmo ao lado da aparição, o aceno do pano vermelho do meu avô. Fiquei indeciso, barafundido. Então, lentamente, tirei a camisa e agitei-a nos ares. E vi: o vermelho do pano dele se branqueando, em desmaio de cor. Meus olhos se neblinaram até que se poentaram as visões (COUTO, 2003, p. 14).

Deste modo, Mia Couto como Guimarães, reflete o que Fanon (p. 36) argumenta, isto é, que o intelectual quando escreve para seu povo deve escrever no sentido de resgatar a esperança, de mostrar as margens que tem muito a tecer com o centro. Podemos concluir, portanto, que os textos de Mia Couto e Guimarães Rosa podem ser lidos como textos descolonizadores, ao usar a linguagem para mostrar rebeldia à visão estereotipada de um país, de uma região, de um povo. As vozes amortecidas, negligenciadas, distorcidas aparecem para fazer a diferença, para anunciar um outro mundo. Ademais, os textos de Guimarães e Mia Couto, argumentamos, dialogam entre si para reafirmar, inverter, contestar e deformar alguns de seus sentidos. “A Terceira Margem do Rio” e “Nas Águas do Tempo”, revelam que prosa e poesia se confundem para mostrar uma realidade nunca antes percebida. Ambos os autores tratam da angustia do ser humano diante do mistério da vida e da morte. Concluímos que os dois autores nos contos analisados escrevem textos de descolonização usando a linguagem para desvelar, revelar e desmantelar a “verdade” ou a mentira do colonizador. Logicamente pode-se perceber diferenças nos contos dos autores. Em Mia Couto, parece haver mais uma preocupação com o processo da criação ou melhor recriação da linguagem e menos com a história em si ou com questões psicológicas mais profundas. Segundo o autor moçambicaono(2007), a idéia de recriar, dentro da língua portuguesa, uma outra língua culturalmente remodelada, concretiza a possibilidade de mediação entre classes cultas e simples por meio da fala. "Somente renovando a língua se pode renovar o mundo", argumento o autor. Mia Couto também explora mais a questão do sobrenatural, do apego aos antepassados. A sua narrativa parece ser mais brincalhona e mais leve enquanto que em Guimarães a narrativa vai se tornando densa, como se sugerisse a necessidade de se recorrer à Psicologia para entender os mistérios do pai. Os textos sugerem que a Linguagem é fundamental para a descolonização. Eles chama atenção sobre a língua do outro, isto é sobre outras variantes “ impuras” a linguagem do povo apegado à terra, à casa, ao rio. Os autores mostram que a força da linguagem pode ser demonstrada pelo poder de nomear e renomear, pois nomear é estar próximo, é entender, renomear, recriar a linguagem é uma forma de dizer que não se aceita a imposição ou a colonização.

REFERÊNCIAS
ASHCROFT, Bill. Constitute Graphony. In The Postcolonial Studies Reader. Ashcroft, B. Griffiths G
e Tiffin, H. London and New York: Routledge. 1995
COUTO, Mia. Nas águas do tempo. Estórias abensonhadas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
COUTO, Mia. Venenos de Deus, Remédios do Diabo: Rio Nova Fronteira, 2008.
COUTO, Mia. Palestra realizada na manhã desta terça-feira, dia 3 de julho 2007, no auditório da
reitoria da UFMG. Mia Couto usa obra de Guimarães Rosa para explicar semelhanças entre Brasil
e Moçambique. Centro de Comunicaçaõ da UFMG, 03/07/2007.
COUTO, Mia. Entrevista a Fabio Salem, Nivaldo Souza, Rodrigo Antonio, Rodrigo Turrer e Thais
Arbex Pinhata. Disponível em http://group. xiconhoca.com/2009/01/13/mia-couto-autor-de-oultimo-
voo-do-flamingo-entrevista/
A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009 99
FANON, F. The Wretched of the Earth. London: Penguin books, 1983
FIGUEIREDO, Maria do Carmo Lanna. Sacudindo o sentido do mundo: o texto e a mulher em
Guimarães Rosa e Mia Couto. In: Veredas de Rosa II. II Seminário Internacional Guimarães Rosa.
2001. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2003.
NGUGI, Wa. Thing´o Decolonizing the Mind: The politics of language In AFrican literature. London:
James Currey, 1986.
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. São Paulo : Nova Fronteira, 2005
ROSA, João Guimarães. Noites do sertão. Rio de Janeiro/São Paulo: Record/Atalaia, n.d. Disponível
em: xiconhoca.com/2009/01/13/mia-couto-autor-de-o-ultimo-voo-do-flamingo-entrevista.
SANTOS, Iolanda Crsitina dos. Brasil e Moçambique: estórias que se contam. Iolanda Cristina dos
Santos. Disponível em www.segundocoloquioafricano.ufjf.br/iolanda.pdf

1Doutor em Letras, Professor de Literatura de Língua Inglesa da Universidade Federal de Rondonia (UNIR); endereço eletrônico: mneneve@hotmail.com

2Aluna PIBIC do Curso de Letras Ingles da Universidade Federal de Rondonia (UNIR); endereço eletrônico: kim_rosely@yahoo.com.br.

3 Palestra proferida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no dia 3 de julho 2007,
no auditório da reitoria da UFMG. Disponível no periódico Centro de Informação da UFM.

4 Entrevista a Fabio Salem, Nivaldo Souza, Rodrigo Antonio, Rodrigo Turrer e Thais Arbex Pinhata. Disponível em: http://group.xiconhoca.com/2009/01/13/mia-couto-autor-de-oultimo-voo-do-flamingo-entrevista

Artigo em A COR DAS LETRAS, UEFS, NUMERO 10, 2009

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