quinta-feira, 31 de maio de 2012

O estranho, o estrangeiro e o outro no mundo globalizado: desafios e caminhos para a alteridade


                                                     Miguel Nenevé



Sendo aqui um lugar, onde as mentes se independem
ou se isolam  mais rápido,
sem opções, forçadas pela sociedade.
O toque e o trato se debilitam ,
o laço se enfraquece,
perde-se  a intimidade familiar.
a convivência:
os asilos se multiplicam...

Onde a morte é aceita
como um velho amigo,
já  esperado a bater na sua porta,
e te encontrar nas travessas da vida.

Tudo parece ser mais superficial,
embora há fartura material  ( Kim Kevin Siepamann)

No mundo globalizado em que vivemos nos parece fácil afirmar que muitas barreiras entre países e culturas foram transpostas . Daqui da cidade de Porto Velho, na Amazônia brasileira,  podemos “entrar” virtualmente em uma loja da Frys, na cidade de São José, na Califórnia. Podemos ver por meio de fotografias os produtos, saber os preços e ter  quase todas as informações necessárias. Também por meio da internet, com tantas redes sociais, podemos nos encontrar com pessoas de todo mundo, ter acesso a sua imagem e a imagem de seu meio circundante. O que há vinte anos ainda era impossível hoje é uma realidade. Sem dúvida se pensarmos assim, a globalização  aparentemente diminui as barreiras  e deixou o mundo mais ligado, mais conectado e, para usar um estrangeirismo fruto da globalização, mais “linkado.”  Podemos, no entanto, afirmar com segurança que a globalização acabou com as diferenças, que uniu mais os povos, que o estrangeiro deixou de existir? Creio que é fácil perceber que a globalização pode unir, mas pode também separar. Pode dirimir ou estimular as diferenças entre povos, entre etnias e entre os que têm poder e os que não têm. Neste espaço gostaria de refletir brevemente sobre o conceito de “estranho” e “estrangeiro”, o “diferente”, o “ desconhecido” e o “outro” que permanece em nossa vivência mesmo no mundo globalizado.
A epígrafe acima reflete um pouco isso. É um texto escrito de forma poética por um adolescente, Kim Kevin Siepamann que deixou sua terra , o norte do Brasil, para estudar no exterior, mais precisamente no estado de Colorado nos Estados Unidos. Solicitado a escrever sobre suas impressões ele deixou escapar estas linhas que nos fazem lembrar o livro Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley.  O seu texto revela estranheza e desconforto em um mundo em que os “laços se enfraquecem”, onde tudo parece ter menos vida, menos vibração. Isso reflete bem o que falou o americano Robert Danton na entrevista que deu para a “Folha” quando afirma que a fragmentação espiritual enfraquece o “primeiro mundo” por exemplo, e cita o Brasil como os país com vitalidade e vibração. Logicamente que as culturas são diferentes, as Histórias dos povos são diversas  e nem sempre se trata de um ser melhor que outro. O que é interessante é perceber que o estranho e o estrangeiro ainda persistem no mundo globalizado, ainda se é estrangeiro, as pessoas continuam sentindo-se deslocadas, desenraizadas e desconfortáveis ao sair de sua terra. O xenos, como diziam os gregos, no sentido de ser estrangeiro de não pertencer, de não ser membro de determinada comunidade ainda persiste. Mesmo que seja amigo, viajante, hóspede se é  o que vem de fora que não faz parte do grupo e quem não tem muita voz no meio. Estrangeiro pode ser ambíguo, mas tem a conotação do que é de fora a ou como diz Cláudia Dornbusch a respeito  do termo, “o adjetivo correspondente fremd pode significar tanto estrangeiro, quanto estranho como algo extraordinário, novo, que não me parece familiar, podendo causar estranheza, espanto ou estranhamento”.  
Meu argumento é que independentemente do  termo que usarmos, estrangeiro, xenos, étranger, ou étrange, ou fremd, strange ou foreigner, não há como evitar o sentimento de se estar em „ outro lugar“ , outra nação, outra cultura. Portanto há uma conotação de nao pertencimento. E aí que existe o desafio de se fazer pertencer: um  perceptível e indispensável desafio para quem quer crescer, para quem quer enfrentar a provocação  e talvez o”convite”  de conhecer um mundo novo, de atravessar as fronteiras , encarar as dificuldade não somente linguísticas, culturais , mas de outras ordens. É neste aspecto que a estranheza pode se tornar produtiva: a mistura de culturas, origens e “backgrounds” fornece as pessoas, especialmente aos jovens, uma percepção e um alerta inesquecível sobre a importância de apreciar o outro, de valorizar o outro de repensar a si observando o mundo do outro. Aqui podemos falar da alteridade, a noção de que  a diferença constitui a vida social,  e é importante para vida social e pode causar conflito, mas também provoca crescimento.
 Quando um estudante ou outra pessoa se muda para uma nova realidade, a dificuldade é certeira. Dificuldade em adaptar-se ao novo ambiente, aos novos colegas, novo sistema, novas crenças, estilos diferentes de viver e de ensinar, diferentes regras, diferentes lógicas e razões, novo mundo. Com a consciência da dificuldade e a vontade de crescer e abrir-se a outra cultura ao outro consegue-se transpor as barreiras e assim ajudar a dissolver ao menos um pouco a estranheza, o estranhamento, o deslocamento, o sentimento de estar “fora do lugar.” Na realidade é no intercambio, na troca, que a gente adquire novos entendimentos, pensamento crítico e nova compreensão do mundo e da diversidade que ele engloba. A flexibilidade intelectual, a receptividade, a criatividade, a tolerância para com o outro com certeza serão exercidos. É o estranho, o estrangeiro, o fremd o unheimlich de Freud motivando o crescimento. E referindo a “trocas” pode-se dizer que é também a possibilidade de ensinar, de divulgar a riqueza e vitalidade cultural que nós, brasileiros , por exemplo temos. Como disse o americano Robert Danton, falando ao repórter brasileiro: “Vocês têm uma intelligentsia que não existe nos EUA, onde o prestígio de ser um intelectual é menor do que em outros lugares.”  Aí que está a importância de pensar na alteridade, no “alter” no outro e refletir como o “mundo do outro deve ser respeitado” como dizia Octave Mannoni. Olhar para o outro como alguém com quem se pode trocar , a quem podemos ensinar e com quem  aprendemos, não como alguém estranho e estrangeiro ou “bárbaro” que não pode pertencer ao nosso mundo. Este é o desafio que a persiste mesmo com o mundo globalizado.

domingo, 27 de maio de 2012


por:O autor - em: 24-05-2012

Ensino de língua, colonialismo e preconceito

A epígrafe acima é parte de um poema da poeta indiana Kamala Das. Entre outras idéias, o poema sugere que ao aprendermos um idioma ele se torna nosso e podemos falar do jeito que convém para ...
Ensino de língua, colonialismo e preconceito: o caso do comercial da Open English
 
Miguel Nenevé

 
Falo três línguas, escrevo em duas
e sonho em uma..
a língua que falo torna-se minha,
com suas distorções, estranhamentos
totalmente minha (Kamala Das, poeta indiana)
                                                             

 
A epígrafe acima é parte de um poema da poeta indiana Kamala Das. Entre outras idéias, o poema sugere que ao aprendermos um idioma ele se torna nosso e podemos falar do jeito que convém para nossa comunicação, para expressar nossos anseios, nossas dores e nossas necessidades. De certa forma propõe que aprender uma língua estrangeira não significa se tornar mais estrangeiro, mas provavelmente o contrário. O que inevitavelmente ocorre, porém, no ensino de línguas, ainda nos dias de hoje é que para se falar inglês, crê-se,  deve se tornar um pouco britânico ou um pouco americano, porque você fala “a língua do poder.” Esquece-se que dominar inglês hoje é muito mais que isso. Esquece-se que o inglês não é britanico nem americano e que podemos precisar inglês para comunicar-se com China, Hong Kong, Índia, Caribe e praticamente todo o mundo, sem ter que “servir ao imperialismo”. Neste breve artigo, porém, eu gostaria de discutir sobre uma propaganda veiculada por uma escola de língua inglesa, online, chamada Open English. Este comercial revela  uma mentalidade muito antiga, muito preconceituosa, colonialialista e que, de certa forma , ao invés de estimular a aprendizagem do idioma estrangeiro, faz o contrário, motiva repulsa.
 
Impossível ser um profissional de Letras, especialmente de ensino de letras estrangeiras, sem ter visto o vídeo e sem ter  participado de alguma discussão sobre o caso da dita  escola de inglês Open English e de sua  propaganda infeliz,  ideologicamente preconceituosa contra professores brasileiros. Além disso, o anúncio pode ser também considerado vergonhasamente discriminatório e sexista. O preconceito veiculado é na realidade contra o professor de inglês que não é “native speaker” ou seja que não é falante nativo. A proaganda em vídeo pode facilmente ser acessada pela internet e apresenta  dois jovens que querem aprender inglês, um vasi para uma escola tradicional onde a professora é brasileira e outro com seu tablet acessa uma escola online Open Line, podendo falar com uma professora na California. Vamos entao a alguns passos do vídeo :

O comercial apresenta no vídeo dois jovens, um  bem sério, bem vestido , podendo ser associado a um estudante “cdf” ou como se dizia antigamente, a um estudante “caxias”: camisa  fechada, postura curvada, cores sóbrias, cheio de livros nas mãos, enquanto
o outro jovem, de aparência rica, mas não muito séria, camisa aberta, cores mais chamativas, computador (ou tablet) nas mãos, cabeça levantada. Aí fala-se das atividades dos dois: ”um vai a uma escola tradicional, o outro  faz Open English” . “Um passa uma hora no trânsito” se aborrece até chegar à escola toda segunda à  noite.  ”O outro  aprende on-line a qualquer hora do dia”, enquanto surge o rosto sorridente diante da tela do computador. O estudante tradicional tem aula com a “Joana “, uma brasileira, que tem como instrumento de trabalho lousa e giz e escreve a palavra “Chicken”, (galinha). É muito óbia aqui a rdicularização da professora de inglês , que é brasileira. O outro fala com a Jenny, uma americana e portanto “native speaker”. Ela está sorridente, elegante e “cativante”, com padrões de beleza veiculados pela mídia. Não é necessário prosseguir na descirçao do vídeo, pois ele é de fácil acesso e é provável que os leitores já tenham visto.
 
É necessário, no entanto, discutir esta percepçao de ensino de língua estrangeira. O que se vê claramente aí é, entre muitos equívocos alarmantes, a falácia de que um professor “nativo” é melhor que um professor nao nativo, que aprendeu inglês nao como sua lingua materna. Todos que trabalham com idioma estrangeiro conhecem exemplos desta falácia. Há escolas, por exemplo, que contratam professores porque são estrangeiros, nascidos em um país de língua inglesa, mas que não conhecem a lingua a fundo e nao tem nenhum conhecimento didático. A preferência cai sempre por estrangeiros, por aqueles que falam nossa língua portuguesa de forma “enrolada”, que dá uma conotação de estrangeirizaçao. Aí que se percebe a mente colonial, a mente que acredita que o bom “tem que vir de fora” como diz a pesquisadora canadense Mary Louise Pratt. Muitas vezes os brasileiros que pesquisam, estudam, participam de congressos em vários países e conhecem variedades de inglês, são deixados em segundo plano, são preteridos para dar lugar a um nativo que muitas vezes conhece somente o inglês de sua cidade, de sua regiao onde nasceu. Infelizmente, como comenta o professor e pesquisador Denilso Lima os profissionais de inglês brasileiros, as escolas de língua têm ajudado a cosntruir esta imagem que o estrangeiro é melhor. É necessário reclamar, denunciar este preconceito ao mesmo tempo em que precisamos rever nossos próprios conceitos. Lima afirma que muitas dessas instituições que hoje estão reclamando do comercial da Open English, discriminam veladamente os “teacher trainers” brasileiros. Ou seja, a preferência é sempre pelos estrangeiros. “
 
Antes de concluir, gostaria de citar a professora de inglês Selma Moura. Seu comentário sobre a propaganda da Open English é relevante para nossas discussões. Diz a professora que o comercial da Open English  1) é sexista: um padrão de beleza estereotipado é imposto, contrastando as duas atrizes: a “loira gostosa” com a “morena gordinha”. A posição da docência é feminina, e a apreciação da competência da professora pelo aluno – do sexo masculino – passa pelo critério estético;  2) é excludente: ou você é um “nerd” bitolado e sem traquejo social, ou você é um “descolado” espertinho que leva vantagem;  3) mantém uma visão colonialista de que o que é estrangeiro é melhor, muito forte em um país com uma infra-estrutura recente, pouco mais de um século de vida como ex-colônia e uma história de importação de todos os bens de consumo da metrópole européia.

É preciso parar de brincar com ensino de língua estrangeira e para isso é preciso “desestrangeirizar” o ensino. Temos que  apresentar o idioma como mais uma ferramenta de comunicação, não como meio de esnobaçao, como algo que ajude a discriminar os “eleitos” e os “condenados” ou  como algo somente possível para privilegiados. Se pensarmos mais na comunicação e na emancipação do aprendiz de uma segunda língua, muitos destes preconceitos vão ruir por terra.