Miguel Nenevé
Sendo aqui um lugar, onde as mentes se independem
ou se isolam mais rápido,
sem opções, forçadas pela sociedade.
O toque e o trato se debilitam ,
o laço se enfraquece,
perde-se a intimidade
familiar.
a convivência:
os asilos se multiplicam...
Onde a morte é aceita
como um velho amigo,
já esperado a bater na sua
porta,
e te encontrar nas travessas da vida.
Tudo parece ser mais superficial,
embora há fartura material
( Kim Kevin Siepamann)
No mundo globalizado em que vivemos nos
parece fácil afirmar que muitas barreiras entre países e culturas foram
transpostas . Daqui da cidade de Porto Velho, na Amazônia brasileira, podemos “entrar” virtualmente em uma loja da
Frys, na cidade de São José, na Califórnia. Podemos ver por meio de fotografias
os produtos, saber os preços e ter quase
todas as informações necessárias. Também por meio da internet, com tantas redes
sociais, podemos nos encontrar com pessoas de todo mundo, ter acesso a sua
imagem e a imagem de seu meio circundante. O que há vinte anos ainda era
impossível hoje é uma realidade. Sem dúvida se pensarmos assim, a
globalização aparentemente diminui as
barreiras e deixou o mundo mais ligado,
mais conectado e, para usar um estrangeirismo fruto da globalização, mais
“linkado.” Podemos, no entanto, afirmar com
segurança que a globalização acabou com as diferenças, que uniu mais os povos,
que o estrangeiro deixou de existir? Creio que é fácil perceber que a
globalização pode unir, mas pode também separar. Pode dirimir ou estimular as
diferenças entre povos, entre etnias e entre os que têm poder e os que não têm.
Neste espaço gostaria de refletir brevemente sobre o conceito de “estranho” e
“estrangeiro”, o “diferente”, o “ desconhecido” e o “outro” que permanece em
nossa vivência mesmo no mundo globalizado.
A epígrafe acima reflete um pouco isso. É um texto escrito de forma poética
por um adolescente, Kim Kevin Siepamann que deixou sua terra , o norte do
Brasil, para estudar no exterior, mais precisamente no estado de Colorado nos
Estados Unidos. Solicitado a escrever sobre suas impressões ele deixou escapar
estas linhas que nos fazem lembrar o livro Admirável Mundo Novo de Aldous
Huxley. O seu texto revela estranheza e
desconforto em um mundo em que os “laços se enfraquecem”, onde tudo parece ter
menos vida, menos vibração. Isso reflete bem o que falou o americano Robert
Danton na entrevista que deu para a “Folha” quando afirma que a fragmentação
espiritual enfraquece o “primeiro mundo” por exemplo, e cita o Brasil como os
país com vitalidade e vibração. Logicamente que as culturas são diferentes, as
Histórias dos povos são diversas e nem
sempre se trata de um ser melhor que outro. O que é interessante é perceber que
o estranho e o estrangeiro ainda persistem no mundo globalizado, ainda se é
estrangeiro, as pessoas continuam sentindo-se deslocadas, desenraizadas e
desconfortáveis ao sair de sua terra. O xenos, como diziam os gregos,
no sentido de ser estrangeiro de não pertencer, de não ser membro de determinada
comunidade ainda persiste. Mesmo que seja amigo, viajante, hóspede se é o que vem de fora que não faz parte do grupo
e quem não tem muita voz no meio. Estrangeiro pode ser ambíguo, mas tem a
conotação do que é de fora a ou como diz Cláudia Dornbusch a respeito do termo, “o adjetivo correspondente fremd
pode significar tanto estrangeiro, quanto estranho como algo extraordinário, novo,
que não me parece familiar, podendo causar estranheza, espanto ou estranhamento”.
Meu argumento é que independentemente do termo que usarmos, estrangeiro, xenos, étranger, ou étrange, ou fremd,
strange ou foreigner, não há como evitar o sentimento de se estar em „ outro
lugar“ , outra nação, outra cultura. Portanto há uma conotação de nao
pertencimento. E aí que existe o desafio de se fazer pertencer: um perceptível e indispensável
desafio para quem quer crescer, para quem quer enfrentar a provocação e talvez o”convite” de conhecer um mundo novo, de atravessar as
fronteiras , encarar as dificuldade não somente linguísticas, culturais , mas
de outras ordens. É neste aspecto que a estranheza pode se tornar produtiva: a
mistura de culturas, origens e “backgrounds” fornece as pessoas, especialmente
aos jovens, uma percepção e um alerta inesquecível sobre a importância de
apreciar o outro, de valorizar o outro de repensar a si observando o mundo do
outro. Aqui podemos falar da alteridade, a noção de que a diferença
constitui a vida social, e é importante
para vida social e pode causar conflito, mas também provoca crescimento.
Quando
um estudante ou outra pessoa se muda para uma nova realidade, a dificuldade é certeira.
Dificuldade em adaptar-se ao novo ambiente, aos novos colegas, novo sistema, novas
crenças, estilos diferentes de viver e de ensinar, diferentes regras,
diferentes lógicas e razões, novo mundo. Com a consciência da dificuldade e a
vontade de crescer e abrir-se a outra cultura ao outro consegue-se transpor as
barreiras e assim ajudar a dissolver ao menos um pouco a estranheza, o
estranhamento, o deslocamento, o sentimento de estar “fora do lugar.” Na
realidade é no intercambio, na troca, que a gente adquire novos entendimentos,
pensamento crítico e nova compreensão do mundo e da diversidade que ele
engloba. A flexibilidade intelectual, a receptividade, a criatividade, a
tolerância para com o outro com certeza serão exercidos. É o estranho, o
estrangeiro, o fremd o unheimlich de Freud motivando o crescimento. E referindo
a “trocas” pode-se dizer que é também a possibilidade de ensinar, de divulgar a
riqueza e vitalidade cultural que nós, brasileiros , por exemplo temos. Como
disse o americano Robert Danton, falando ao repórter brasileiro: “Vocês têm uma intelligentsia que não
existe nos EUA, onde o prestígio de ser um intelectual é menor do que em outros
lugares.” Aí que está a importância de
pensar na alteridade, no “alter” no outro e refletir como o “mundo do outro
deve ser respeitado” como dizia Octave Mannoni. Olhar para o outro como alguém
com quem se pode trocar , a quem podemos ensinar e com quem aprendemos, não como alguém estranho e
estrangeiro ou “bárbaro” que não pode pertencer ao nosso mundo. Este é o
desafio que a persiste mesmo com o mundo globalizado.
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